Líbia: “Tinha medo de que algo ruim acontecesse com meu filho”

Para fugir da violência, líbios são forçados a arriscar suas vidas em uma perigosa travessia para a Europa.

Foto: Candida Lobes/MSF

Em 2 de novembro de 2022, o Memorando de Entendimento (MoU) sobre a Migração entre os governos italiano e líbio foi renovado automaticamente por três anos. O acordo, patrocinado pela União Europeia (UE), recebeu milhões de dólares de apoio financeiro e técnico dados à Guarda Costeira da Líbia, que interceptou mais de 100 mil pessoas no mar desde que o documento foi assinado pela primeira vez, em 2017. Essas pessoas foram retornadas à força e levadas aos centros de detenção líbios, presas em um ciclo de abuso.

As equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) que operam na Líbia e no Mar Mediterrâneo vêm testemunhando em primeira mão a série de danos que este acordo financiou e afirmaram, repetidamente, que a Líbia não é um lugar seguro para os migrantes serem levados de volta.

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No meio da noite, um pequeno barco de madeira surgiu da escuridão em águas internacionais ao longo da costa da Líbia. As 40 pessoas a bordo estavam navegando por muitas horas após fugir da Líbia em busca de segurança na Europa. Lunja, a mais jovem, de apenas sete meses de vida, foi uma das primeiras a ser resgatada e transportada com segurança para o Geo Barents, navio de busca e resgate operado por MSF.

O pai de Lunja, Tarek*, coloca um colete salva-vidas no irmão da bebê, Ghani, de cinco anos de idade.

“A única razão pela qual fiz minha família passar por isso foi para assegurar seu futuro”.
– Tarek, de 35 anos, que é de um vilarejo do grupo étnico berbere, perto da costa na Líbia, e fugiu do país com sua esposa e dois filhos.

“A Líbia é um lugar perigoso, onde as milícias controlam tudo. Eu não tenho controle sobre a minha vida, as milícias têm. Toda semana, alguém é morto sem motivo. Tinha medo de que algo ruim acontecesse com meu filho quando saíamos para caminhar. Eu só andava segurando a mão dele para me sentir um pouco mais seguro”, explica Tarek.

Para ele, o colapso de seu país, juntamente com a destruição de seus sonhos e esperança no futuro, abriu o caminho para a decisão de sair da Líbia. Outros líbios como Tarek e sua família estão tentando a perigosa travessia do país para a Europa. Entre junho de 2021 e outubro de 2022, 121 cidadãos líbios foram resgatados de barcos em perigo no Mar Mediterrâneo Central.

Líbios vivem insegurança constante

Depois que o regime de Muammar Gaddafi caiu em 2011, a guerra civil eclodiu, e a Líbia tornou-se um campo de batalhas para grupos armados que competem pelo poder. Um relatório de junho de 2022 da Missão de Investigação Independente das Nações Unidas na Líbia descreveu violações sistemáticas dos direitos humanos, incluindo contra migrantes, refugiados e solicitantes de asilo. O documento reportou ataques diretos e indiscriminados a civis, assassinatos, torturas, prisões, estupros, desaparecimentos forçados e atos desumanos cometidos em centros de detenção.

“Sempre que saio, nunca sei se voltarei”.
– Tarek, migrante líbio.

“O país tornou-se muito perigoso para as crianças crescerem”, relata Tarek. “Sempre que saio, nunca sei se voltarei. Esperamos tanto tempo para que um governo fosse estabelecido e para que a lei e a ordem fossem restabelecidas, mas desisti de que isso acontecesse. A revolução de 2011 nos deu esperança de que poderíamos mudar nosso futuro. Em vez disso, não temos escolas, hospitais e serviços básicos.”

“Na Líbia, você tem duas opções: juntar-se a uma milícia ou morrer”

Tarek trabalhou como policial de 2013 até 2018, quando foi forçado a se demitir depois que a milícia assumiu o controle da região e ameaçou matá-lo por causa de sua profissão. “Na Líbia, você tem duas opções: juntar-se a uma milícia ou morrer”, afirma. “Quando deixamos a Líbia de barco, ajudamos uma amiga a fugir conosco. Ela é viúva e mãe de três filhos. Seu marido era um amigo meu, ele [também] trabalhava na força policial. Foi baleado nas costas por um membro da milícia depois de tentar impedir as atividades ilegais das milícias.”

“Embora a União Europeia afirme estar financiando o governo líbio, o dinheiro vai, na verdade, para as milícias”, disse Tarek. “As milícias encarregadas dos centros de detenção também supervisionam o tráfico de pessoas. Pergunte a qualquer um dos migrantes que foram capturados no mar e levados aos centros de detenção, e todos dirão que foram vendidos por traficantes para aqueles que controlam os centros de detenção. Eles trabalham juntos para explorar os migrantes, que são vendidos e escravizados. Todo mundo sabe disso na Líbia.”

Violações contra migrantes permanecem impunes

Vários relatórios internacionais, bem como milhares de relatos de pessoas que conseguiram fugir de centros de detenção, confirmam essa descrição do tratamento terrível dirigido a migrantes e refugiados na Líbia. “A situação dos direitos humanos na Líbia continua preocupante”, disse Abdoulaye Bathily, representante especial para a Líbia e chefe da missão de apoio da ONU no país, em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, em outubro de 2022. “As violações contra migrantes e solicitantes de asilo continuam impunes. A detenção arbitrária permanece como uma prática comum […]. Aproximadamente 3.243 migrantes [estão] detidos arbitrariamente em centros de detenção operados por entidades governamentais.”

A insegurança, os confrontos militares, os ataques deliberados a civis, a tortura, o abuso e a exploração contra migrantes, sistemáticos e amplamente documentados, devem ser suficientes para provar à UE e aos governos italianos que a Líbia não pode ser considerada um local seguro. Milhares de migrantes e solicitantes de asilo representam o sacrifício das políticas europeias de dissuasão da migração; suas vidas parecem dispensáveis em nome da proteção das fronteiras.

*Todos os nomes foram alterados por motivos de privacidade e/ou segurança.

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